A polêmica em torno da regularidade do "inquérito das fake news", sob a égide do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal
O Inquérito nº 4781, em curso no Supremo Tribunal Federal e
popularmente apelidado de “Inquérito das Fake News”, lançou ao centro do debate
jurídico uma norma pouco conhecida por quem não atua diretamente nos trâmites
internos dos processos nas Cortes de Justiça brasileiras, mas que constitui
importante fonte regulatória, inclusive com força de lei. Trata-se do Regimento
Interno do Supremo Tribunal Federal (RISTF), justamente no qual se respaldou a
abertura do aludido inquérito e todas as diligências nele adotadas. Porém, o
tema é controverso e longe de uma interpretação pacífica.
De logo é necessário deixar claro que o aludido Regimento
foi editado sob a égide da Constituição Federal de 1969 (ou a Emenda
Constitucional nº 1, de 17.10.1969, que deu nova redação à Constituição Federal
de 1967). Nela, a partir da Emenda Constitucional nº 07, de 1977, se conferiu à
Suprema Corte, dentre outras, a prerrogativa de, por regimento interno,
estabelecer “o processo e o julgamento dos feitos de sua competência
originária ou recursal e da arguição de relevância da questão federal” (art.
119, § 3º, “c”).
Nessa extensão, o RISTF já foi alvo, em diversas ocasiões,
de questionamento quanto às suas disposições processuais, eis que a sistemática
trazida com a Constituição Federal de 1988 é outra, reservando a legislação
sobre essa matéria (processual) à competência privativa da União (art. 22, I).
No entanto, a própria Corte, que tem a palavra definitiva em temas
constitucionais, já fixou a compreensão de que o seu regimento foi recepcionado
pela Constituição Federal vigente e que, por isso, permanecem em vigor as suas
disposições, mesmo as de natureza estritamente processual.
Veja-se, por exemplo, o quanto recentemente decidiu o
plenário do Supremo Tribunal sobre o tema, ratificando sua sedimentada
jurisprudência:
“EMBARGOS
DE DIVERGÊNCIA – MATÉRIA PENAL – DESCUMPRIMENTO, PELA PARTE EMBARGANTE, DO
DEVER PROCESSUAL DE DEMONSTRAR A EXISTÊNCIA DO ALEGADO DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL
DETERMINADO NO ART. 331 DO RISTF – SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL – COMPETÊNCIA
NORMATIVA PRIMÁRIA (CF/69, ART. 119, § 3º, “c”) – POSSIBILIDADE CONSTITUCIONAL,
SOB A ÉGIDE DA CARTA FEDERAL DE 1969, DE O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL DISPOR, EM
SEDE REGIMENTAL, SOBRE NORMAS DE DIREITO PROCESSUAL – RECEPÇÃO, PELA
CONSTITUIÇÃO DE 1988, DE TAIS PRECEITOS REGIMENTAIS COM FORÇA E EFICÁCIA DE LEI
(RTJ 147/1010 – RTJ 151/278) – PLENA LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL DO ART. 331 DO
RISTF – ACÓRDÃO EMBARGADO QUE NÃO APRECIA O MÉRITO DA QUESTÃO SUSCITADA NO
APELO EXTREMO – RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO. – (...) – O Supremo Tribunal
Federal, sob a égide da Carta Política de 1969 (art. 119, § 3º, “c”), dispunha
de competência normativa primária para, em sede meramente regimental, formular
normas de direito processual concernentes ao processo e ao julgamento dos
feitos de sua competência originária ou recursal. Com a superveniência da
Constituição de 1988, operou-se a recepção de tais preceitos regimentais, que
passaram a ostentar força e eficácia de norma legal (RTJ 147/1010 – RTJ
151/278), revestindo-se, por isso mesmo, de plena legitimidade constitucional a
exigência de pertinente confronto analítico entre os acórdãos postos em cotejo
(RISTF, art. 331). – A inadmissibilidade dos embargos de divergência
evidencia-se quando o acórdão impugnado sequer aprecia o mérito da questão
suscitada no recurso extraordinário.” (ARE 1047578 ED-AgR-ED-EDv-AgR,
Relator(a): Min. CELSO DE MELLO,
Tribunal Pleno, julgado em 30/11/2018, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-268 DIVULG
13-12-2018 PUBLIC 14-12-2018)
Portanto, acertada ou não essa compreensão receptiva, não
resta dúvida de que o Supremo Tribunal Federal, a quem compete decidir
definitivamente sobre o tema, já fixou o entendimento de que suas normas regimentais
de natureza processual permanecem em integral vigência com a atual
Constituição Federal e, por isso, têm aplicação em toda a sua extensão.
Sucede, porém, que o fato de tais normas permanecerem em
vigência não encerra o debate acerca da validade do indigitado inquérito das
“fake news”, sendo a questão mais profunda.
O aludido inquérito foi instaurado com lastro no art. 43 do
RISTF, cujo teor assim se exprime:
“Art. 43.
Ocorrendo infração à lei penal na sede ou dependência do Tribunal, o Presidente
instaurará inquérito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua
jurisdição, ou delegará esta atribuição a outro Ministro.
§ 1º
Nos demais casos, o Presidente poderá proceder na forma deste artigo ou requisitar
a instauração de inquérito à autoridade competente.
§ 2º
O Ministro incumbido do inquérito designará escrivão dentre os servidores do
Tribunal.”
Conforme se colhe do caput do aludido artigo
regimental, ali a premissa direta para a instauração do inquérito é clara: a
ocorrência de infração à Lei Penal na sede ou em dependência da Suprema
Corte - o que já seria suficiente para excluir a investigação de fatos
havidos em locais diversos.
Note-se que o entendimento não se altera no caso dos
chamados “crimes virtuais”, tendo em vista que, quando praticados pela
Internet, a competência é firmada pelo lugar de onde partiu o fato delituoso
(STJ, RHC 114556 SC), regra que direciona a fixação da jurisdição nos processos
envolvendo crimes contra a honra ou a reparação por danos morais, em derivação
de ofensas por esse meio praticadas.
A controvérsia, assim, somente pode remeter à interpretação,
não do caput, mas do § 1º do aludido dispositivo, em relação aos “demais
casos” ali ventilados.
Neste ponto, a corrente que defende a regularidade do inquérito
entende que tal expressão ("nos demais casos") se refere aos
crimes praticados fora do Tribunal e que, em razão disso, nada obstaria que se
procedesse “na forma deste artigo”, convalidando a instauração do
inquérito pela Presidência ou a delegação a outro Ministro para que assim
procedesse.
Não há dúvida de que é uma compreensão teoricamente viável e
longe de teratologias. Entretanto, além de exigir dar ao parágrafo sentido mais
amplo do que ao caput, não aparenta ser esse o objetivo do texto
regimental, cujo propósito mais se identifica com o de tratar os casos em que a
infração não envolve autoridade ou pessoa sujeita à jurisdição da Corte
Suprema, mas sempre mantida a premissa central do dispositivo, de se tratar
de fato ocorrido em sua sede ou dependência. Afinal, é amplamente possível que
um delito ali configurado não envolva qualquer dos Ministros ou Autoridade com
prerrogativa de foro, limitando-se aos advogados ou servidores, por exemplo.
Por esta segunda leitura, uma vez constatada a prática de
uma infração na sede ou em dependência do Supremo Tribunal Federal, haverá
sempre duas possibilidades, desdobradas em duas condutas cada:
a) Se
a infração envolve pessoa ou autoridade sujeita à jurisdição da Corte (caput):
a.1) o Presidente deve instaurar o
inquérito; ou
a.2) delegar esta atribuição a outro
Ministro.
b) Se
o delito não envolve pessoa ou autoridade sujeita à jurisdição da Corte
(demais casos - § 1º):
b.1) o Presidente também instaura
inquérito; ou
b.2) requisita que a autoridade
competente o faça.
Quaisquer que sejam os envolvidos no ilícito, porém, se a
infração se dá fora dos limites do Supremo (sede ou dependência), o
aludido artigo não tem aplicação e o inquérito ali previsto não encontra espaço
para que seja instaurado na forma regimental, seja pelo Presidente, seja por
outro Ministro, seja pela Autoridade Competente, reservando-se o caso à
apuração penal ordinária.
Esta corrente reflete nítida melhor exegese sistêmica do
Regimento em foco, especialmente tendo em vista que o dispositivo em análise se
encontra em seu Capítulo VIII, sob o título “Da Polícia do Tribunal”,
tendo, assim, por escopo assegurar a apuração de ilícitos que ali se
materializem, resguardando a autoridade e a incolumidade da Corte e de seus
integrantes contra violações em seu próprio espaço.
Se assim não for, e os preditos “demais casos” se referirem
a qualquer crime, praticado em qualquer lugar, o Supremo Tribunal assumirá
feições, não de Julgador, mas de órgão inquisitorial ordinário, estando
legitimado (e regimentalmente obrigado) a apurar qualquer tipo de infração que
lhe chegue ao conhecimento, em exercício típico das atribuições do Ministério
Público ou do próprio ofendido – nos crimes de ação penal privada.
Destarte, em que pese a abalizada
compreensão diversa, à qual se roga a devida vênia, e independentemente de
qualquer análise acerca da materialidade penal das condutas em apuração, ou
mesmo de algum outro aspecto formal do inquérito em apreço, não parece estar
ele, de fato, amparado pelas específicas disposições regimentais de regência,
tendo em vista que não observada a premissa de se cuidar de condutas empreendidas
na sede ou dependências da Suprema Corte.
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Como citar este artigo (ABNT): REBELO, Fabricio. O Regimento do Inquérito. Disponível em: [https://www.cepedes.org/2020/05/o-regimento-do-inquerito_29.html]. Acesso em (inserir data).