Como a massificação da ideologia desarmamentista ofusca a real opção manifestada pela população brasileira no referendo sobre o comércio de armas de fogo, realizado em 2005.
Não gosto de textos na primeira pessoa. Talvez seja um resquício do tempo na advocacia, campo no qual falamos dos outros e, de preferência, sem envolvimento. Contudo, há experiências pessoais que rendem relatos, e o distanciamento se faz impossível. É o caso.
Há alguns dias, fui convidado a participar de um programa numa rádio local, abordando temas ligados à segurança pública. Dentre eles, destaque para o projeto de lei nº 3.722/12, que revoga o estatuto do desarmamento e cria algo como um estatuto de controle de armas de fogo. A entrevista foi muito bem conduzida, o que sempre facilita muito a vida do entrevistado. Porém, em um dado momento, a controvérsia sobre um fato específico fez-me perceber que, na questão das armas de fogo, o governo federal e seus aliados desarmamentistas estão conseguindo apagar da sociedade sua própria história.
O imbróglio começou quando afirmei que um dos grandes méritos do projeto de lei é respeitar a vontade da população, que em 2005 se manifestou contrária ao desarmamento. Imediatamente, o apresentador retrucou: “mas a população ficou a favor do desarmamento!”. Tive trabalho para, resgatando detalhadamente a história, convencê-lo do contrário, pois, para ele, “não poderia ser imposto o que não foi aprovado”. E o apresentador tem razão, realmente não poderia.
Estamos sendo tão massificados por um discurso desarmamentista ideologicamente plantado que chegamos a acreditar que optamos por isso, mas nunca o fizemos. O estatuto do desarmamento não é fruto do referendo de 2005, mas a ele anterior. Dentre as formas de consulta popular, o referendo é sempre posterior à edição de uma norma, justamente para que seja ela referendada ou não. É o oposto do plebiscito, em que primeiro se colhe a opinião da sociedade sobre um determinado assunto para depois elaborar leis para acolhê-la – e assim mesmo sem obrigatoriedade.
No nosso caso, em 2005, a população brasileira foi chamada às urnas para se manifestar sobre aquele que era o principal dispositivo do estatuto do desarmamento (de 2003), seu eixo central do qual derivaram todos os demais artigos. Tratava-se do artigo 35 da norma, que assim dispunha: “é proibida a comercialização de arma de fogo e munição em todo o território nacional, salvo para as entidades previstas no art. 6º desta Lei”.
A validade da regra foi condicionada ao referendo, ali mesmo convocado no § 1º: “este dispositivo, para entrar em vigor, dependerá de aprovação mediante referendo popular, a ser realizado em outubro de 2005”. Assim, a sociedade foi às urnas e, maciçamente, rejeitou a proibição. Foram 59.109.265 votos contra o banimento ao comércio e 33.333.045 a favor, ou 63,94% versus 36,06% dos votos válidos. E desde então a lei se tornou uma imposição, não uma escolha.
Plebiscitos e referendos são instrumentos válidos e louváveis de exercício da democracia, inclusive expressamente previstos em nossa Constituição Federal (art. 14). Contudo, sua valia é completamente anulada se os resultados que exprimirem não forem rigorosamente respeitados. Do contrário, nega-se a própria democracia e, com isso, ofusca-se a memória de um povo, pela incredulidade com os rumos de sua história. Acontece que não há salvação pela negação, a realidade precisa se impor, e, neste caso, ela vem, sim, com um sonoro “não”.