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domingo, 14 de dezembro de 2014

O impacto do Estatuto do Desarmamento nos homicídios brasileiros.*

Uma breve análise estatística sobre os efeitos do Estatuto do Desarmamento nas taxas gerais de homicídio brasileiras e no percentual de assassinatos cometidos com arma de fogo.

Após onze anos vigente, o Estatuto do Desarmamento (Lei nº 10.826/03) voltou ao centro das discussões no Congresso Nacional, diante da tramitação do Projeto de Lei 3722/12, que propõe sua revogação e a criação de novas regras para a circulação de armas de fogo no país. No dia 26 de novembro, a Comissão Especial da Câmara dos Deputados responsável pela análise do texto realizou uma movimentada audiência pública, quando quase uma centena de pessoas lotou o plenário a ela reservado e muitas outras ficaram de fora. Nos debates, discursos favoráveis e contrários à revogação do estatuto, uns recheados de números, outros marcados por ideologia, mas duas correntes claramente contrapostas.

As discussões já repercutem além dos limites do Congresso e se estendem a veículos de mídia, palestras, seminários e, principalmente, as redes sociais, onde a aprovação ao texto é bastante expressiva. Embora com variações de abordagem, traço comum aos debates são os números do Mapa da Violência, o estudo mais confiável sobre violência homicida no Brasil. Curiosamente, a mesma fonte é utilizada nos dois extremos, ora para apontar que os homicídios continuaram a aumentar depois da vigência da lei atual, ora para garantir que aumentaram em ritmo menor.

Ainda que se admita como verdadeiras as duas afirmações – o que já é contestável quanto ao ritmo de aumento de homicídios -, elas, isoladamente, não se prestam a retratar os efetivos impactos do Estatuto do Desarmamento para a violência homicida brasileira, cuja compreensão passa por um campo distinto e, curiosamente, até mais simples.

Ao se analisar qualquer quadro de violência homicida, o dado primordial para seu entendimento não são os números absolutos – embora sejam estes os de maior impacto -, mas as taxas de ocorrências por grupo populacional. É um valor que se convencionou representar na fração por 100 mil habitantes, tal como é utilizada no Mapa da Violência, e que em si já abrange, para finalidades estatísticas, a evolução demográfica do grupo pesquisado. E é daí, exatamente, que se extrai o primeiro elemento comparativo direto sobre os efeitos do Estatuto do Desarmamento nas taxas gerais de homicídio.

Os dados do Mapa da Violência sobre taxas gerais de homicídio estão disponíveis até o ano de 2012, ou seja, nove anos após o Estatuto do Desarmamento, de 23 de dezembro de 2003, começar a produzir efeitos (em 2004). Logo, para um justo e técnico comparativo estatístico, esse período deve ser confrontado com o mesmo intervalo de nove anos anterior à lei.

Pois bem. De 1995 a 2003, ou seja, nos nove anos imediatamente anteriores à vigência do estatuto, a taxa média de homicídios no Brasil (somatório das taxas anuais dividido pelo número de anos pesquisados) foi de 26,44 / 100 mil (238 ÷ 9). Já nos nove anos posteriores (2004 a 2012), a mesma taxa foi de 26,8 / 100 mil (241,2 ÷ 9). Entre os dois períodos, portanto, houve um aumento na taxa de homicídios no país de 1,36%, o que já permite alcançar a conclusão de que, até hoje, a legislação fortemente restritiva às armas não reduziu a taxa média de homicídios em relação ao período anterior à sua vigência.

EVOLUÇÃO DA TAXA MÉDIA DE HOMICÍDIOS 
PERÍODOS COMPARATIVOS (9 anos)
1995 a 2003
2004 a 2012
TAXA MÉDIA DE HOMICÍDIOS (por 100 mil)
26,44
26,80
EVOLUÇÃO (em percentual)
+ 1,36 %


Por outro lado, tratando-se de uma legislação especificamente voltada às armas de fogo, o segundo indicativo de seus efeitos pode ser objetivamente compreendido pela participação percentual deste meio letal no total de assassinatos registrados no país. Afinal, se o objeto da lei foi impedir que o cidadão tivesse fácil acesso às armas – no que, aliás, foi bastante eficaz -, seria natural que, depois dela, a utilização de armas de fogo para a prática homicida fosse proporcionalmente menor.

Não é, contudo, o que mostram os dados oficialmente disponíveis. A edição mais detalhada do Mapa da Violência quanto a armas de fogo até hoje já publicada é a de 2015, sob o subtítulo “Mortes Matadas por Armas de Fogo”. Nela, as estatísticas também vão até 2012, com um detalhamento de casos de disparos letais resultantes de acidentes, suicídios, homicídios e de chamadas “causas indeterminadas”. Essa edição, curiosamente, não traz o total de homicídios registrados no país para o mesmo período, o que pode ser encontrado na edição do ano anterior (2014), com o subtítulo “Os Jovens do Brasil”. O cotejo entre as duas edições do Mapa e a vigência do Estatuto do Desarmamento é inegavelmente esclarecedor.

Tal como a análise por período das taxas gerais de homicídios, os números sobre assassinatos especificamente praticados com armas de fogo disponíveis no Mapa da Violência compreendem igual intervalo de nove anos (2004 a 2012), sendo este período que, pela mesma técnica utilizada anteriormente, deve ser retrocedido em relação à lei (1995 a 2003) para comparar diretamente as duas realidades.

Nessa acepção, o quantitativo total de homicídios praticados no Brasil nos nove anos antes do estatuto foi de 395.435 dos quais 256.844 com arma de fogo, o que resulta numa participação deste meio em 64,95% dos assassinatos. Já nos nove anos posteriores, foram mortas no país 455.146 pessoas, 322.310 das quais com armas de fogo, ou 70,81% do total. Objetivamente, portanto, constata-se que, após a vigência do Estatuto do Desarmamento, os crimes de morte praticados com armas de fogo no Brasil tiveram, em relação ao total de assassinatos, um aumento de 5,86 pontos percentuais, ou 9%.

PERCENTUAL DE HOMICÍDIOS COMETIDOS COM ARMAS DE FOGO
PERÍODOS COMPARATIVOS (9 anos)
1995 a 2003
2004 a 2012
TOTAL DE HOMICÍDIOS
395.435
455.146
HOMICÍDIOS COM ARMA DE FOGO
256.844
322.310
PERCENTUAL DE HOMICÍDIOS COM AF
64,95%
70,81%
EVOLUÇÃO (em %)
+ 9 %


Independentemente de posicionamentos ideológicos ou esforços interpretativos, a aplicação de critérios estatísticos isentos não respalda invocar efeitos positivos com a aplicação da lei atual, salvo se assim for considerada a drástica redução do comércio de armas no país – de 2,4 mil lojas em 2000 para menos de 280 em 2010. 



A questão é que essa redução não diminuiu a taxa média de homicídios ou sequer a participação das armas de fogo no total destes. Talvez isso se explique porque, como há muito vêm insistindo os críticos do estatuto, não é a circulação legal de armas que abastece os assassinos.


* Artigo originalmente publicado em dezembro de 2014 e atualizado em agosto de 2015, com os dados da edição anual do Mapa da Violência;

Fabricio Rebelo é pesquisador em segurança pública e bacharel em direito.