Não é difícil para o cidadão comum que acompanha os noticiários acreditar que quase todas as vítimas de latrocínio reagiram à investida dos criminosos e, por isso, acabaram morrendo. Esse é o discurso repetido à exaustão por grande parte da mídia, por autoridades e, sobretudo, pelas ricas ONGs “da paz” e dos direitos humanos – que parecem ser privativos dos criminosos. Pouco importa o descompasso da narrativa com a realidade, muito menos o que de fato poderia ser chamado de reação, o fundamental parece ser alimentar o discurso ideológico do “não reaja".
Contudo, apesar de todo esforço voltado à sua difusão, a tese da reação necessariamente vinculada à morte da vítima não se sustenta se confrontada com os fatos. São crescentes os casos de execução sumária de quem é roubado, sem o mínimo esboço reativo, bem assim, em lado oposto, os de efetivas reações bem-sucedidas, especialmente a partir do emblemático episódio da idosa de Caxias do Sul (RS), que em 2012 atirou em um agressor que invadiu sua residência.
A questão, demasiadamente simplificada na grande maioria das abordagens, merece uma análise crítica. É fundamental, antes de qualquer outra coisa, se identificar o que vem sendo chamado de “reação” quando uma vítima é morta por um criminoso e, mais importante, ter critérios minimamente técnicos ao noticiar os casos de latrocínio, buscando evitar a indisfarçável tendência à complacente adoção de uma invertida teoria de que “toda reação leva a uma ação”, que resulta na morte de quem reage.
Os noticiários estão recheados de matérias sobre vítimas fatais que teriam reagido, mas basta um aprofundamento, por mínimo que seja, para logo se constatar que a rotulada “reação”, na esmagadora maioria dos casos, em absolutamente nada se relaciona a uma atitude da vítima contra seu agressor, muitas vezes sequer passando de um espasmo involuntário. Hoje, o que se vê é o rótulo de “reação” para toda e qualquer conduta que a vítima tiver, mesmo que esta seja de natureza completamente pacífica. Abaixar-se, levar as mãos ao rosto, sobressaltar-se, chorar, ou até piscar os olhos, tudo que a vítima faz acaba rotulado como “reação”, não havendo um padrão comportamental que possa ser tomado como “adequado”, muito menos capaz de despertar a clemência do algoz.
Esse tipo de abordagem – inexplicavelmente crescente – traz em si uma série de efeitos negativos à compreensão da segurança pública. Primeiro, ele transfere para a vítima a responsabilidade por ter sido morta, como se uma vítima de latrocínio fosse uma suicida, pois qualquer conduta que tenha pode ser vista como reação e, pior, ser usada para justificar a ação de um criminoso cruel, impiedoso. Segundo, por este enviesado raciocínio, bastaria não reagir para ser privado de seus bens em segurança, o que é uma enorme falácia, gerando uma falsa sensação de segurança. É que dizem só morrer quem reage...
O crescimento exponencial de pessoas mortas por criminosos, porém, não decorre de um aumento de reações, longe disso. O que se tem é um aumento generalizado da violência criminal, com bandidos numa crescente de crueldade contra uma sociedade cada vez mais acuada, adotando a postura do atirar primeiro e roubar depois. Atualmente, os registros em vídeo, através de circuitos privados de monitoramento, dão bem a dimensão da forma de agir dos criminosos, que estão puxando o gatilho motivados apenas por sua exclusiva vontade, em muitas ocorrências com as vítimas completamente rendidas. Mas antes mesmo de qualquer esclarecimento do caso, a elas já é imputada a famigerada reação.
No caso mais recente desta verdadeira distorção, um estudante foi morto em Salvador, capital baiana, durante um assalto nas imediações da residência universitária em que morava. Assim que a notícia chegou aos portais informativos, lá estava a observação de que, “segundo as primeiras informações, a vítima reagiu ao assalto”. Ninguém sequer confrontou a alegação com o fato objetivo de que o tiro na vítima foi disparado em sua nuca, ou seja, com ela de costas para o bandido, já após ter sido retirada do carro que era o objeto do roubo. Uma típica execução.
Ao serem presos, dias depois, os criminosos nem pestanejaram ao repetir a tese de reação da vítima, chegando a aludir a uma “luta corporal”. Mas bastou a divulgação das imagens de um circuito fechado de TV para a tese se mostrar descabida, sendo logo substituída pela de que o bandido se assustou e acabou disparando. Mais uma vez, a “reação” que estampava a primeira notícia era falsa.
Reações, as efetivas, são muito mais raras do que se noticia e não costumam ter o desfecho retratado nas coberturas de ocorrência que estamos nos acostumando a ver. Reagir pressupõe uma ação da vítima contra o seu agressor, o que não se confunde, em absoluto, com atos defensivos instintivos ou puramente reflexivos. Além disso, o êxito da reação está vinculado à disponibilidade dos meios para ela necessários, e quando uma vítima que deles dispõe reage, o que se tem, em regra, é a eliminação do risco – e não raro do agressor. O citado caso da idosa de Caxias do Sul bem comprovou isso, como também o fazem os já incontáveis exemplos posteriores de criminosos alvejados ao praticarem ilícitos contra vítimas preparadas.
A questão mais grave, contudo, suplanta a conceituação equivocada das reações e sua indevida difusão. Ela reside em se buscar justificar a ação de criminosos por uma conduta da própria vítima, esquecendo quem está violando a lei, algo como se os bandidos estivessem em seu regular exercício profissional e fossem “atrapalhados” injustamente pela vítima, autorizando sua eliminação. O raciocínio, embora sendo subliminarmente incutido na sociedade, é absurdo, verdadeiramente surreal.
Em absolutamente toda ocorrência de latrocínio, seu início se dá por um ilícito praticado pelo criminoso, o que não é elidido por qualquer conduta que a vítima tenha. A reação da vítima não é prevista penalmente como excludente de ilicitude e um latrocida não deixa de praticar o crime quando atira movido por uma reação dela, real ou não. Proteger a própria vida é um instinto humano e o cidadão que o faz, este sim, está respaldado pela legislação penal, pela legítima defesa prevista no artigo 23, II, do Código Penal. Para o bandido que inicia a prática do crime, não existe a figura penal da “legítima defesa contra a legítima defesa”.
É necessário parar de difundir a reação, especialmente a fictícia, como justificativa para a ação de bandidos, muitas vezes antes mesmo de que eles próprios o façam, como se isso atenuasse seus crimes. Juridicamente, a reação da vítima não exclui a configuração do crime contra ela cometido, mas é imperativo que, no campo moral, também não exclua a crueldade de quem mata. Assassinar quem reagiu não é socialmente mais aceitável, o ato continua sendo um deplorável crime contra a vida; e se é justo alguém morrer quando uma reação ocorre, esse alguém sempre será o criminoso.
Fabricio Rebelo | bacharel em direito, pesquisador em segurança pública e diretor da ONG Movimento Viva Brasil.